Começo dizendo quem sou, aqui do local de minha fala: sou uma mulher negra, nordestina, de matriz africana, nascida no estado de Sergipe. Na minha infância assistia a um programa de televisão a cores protagonizado por uma mulher loira de olhos azuis que contava que era do estado do Rio Grande do Sul. Meu povo nordestino e eu escutávamos, também e muito, sobre as cidades de Gramado, Caxias do Sul. As imigrações italianas e alemãs. Naquela época, eu sequer imaginava que existiam negros e indígenas no sul do país.
Por conta do meu ativismo no movimento negro, me mudei para Brasília aos 18 anos, quando conheci várias e vários intelectuais negros. Matilde Ribeiro, Abdias Nascimento, Samuel Vida e o gaúcho Oliveira Silveira foram alguns deles. E foi Oliveira quem me contou um pouco da história do negro gaúcho, da luta deste povo para ser reconhecido e, de forma emblemática, me disse: "Tem negro no Sul. Desde 1725". Sua palavras me fizeram lembrar de Lélia Gonzalez, a intelectual, autora, política, professora, filósofa e antropóloga brasileira que é pioneira nos estudos sobre cultura negra no país. Lélia dizia: "A questão do etnocentrismo está presente em qualquer cultura. Na medida em que você é socializado, você recebe uma carga cultural muito grande, e você vai olhar o mundo através dessa perspectiva crítica\". Ou seja, as informações emitidas em relação ao Rio Grande do Sul trazem a visão demonstrada por povos que consideravam os seus grupos étnicos como o centro de tudo. Portanto, a cultura negra foi negada de maneira proposital a partir de um processo de invisibilidade intencional, com o objetivo de apresentar para o restante do Brasil a imagem de um "estado distinto" dos demais. Os anseios de uma mãe preta. Com o passar dos anos quis o meu odu, palavra com origem na língua africana Yorubá que significa destino, que eu fosse para as bandas do Rio Grande do Sul. Casei com um gaúcho, construí minha família. E é aqui que nasceram e vivem minhas filhas. Diga-se de passagem, duas negrinhas lindas. A maternidade renova e reforça nosso senso de responsabilidade e proteção. Ao me tornar mãe de uma negra gaúcha, atuei para que ela crescesse em um ambiente referenciado por sua ancestralidade, agora afro-nordestina e afro-gaúcha. Passei a procurar publicações e artigos que contassem histórias desses dois grupos populacionais na região. Lendo sobre as guerras e conquistas, percebi que havia silenciamentos históricos e omissões nas falas que contextualizam a narrativa do povo gaúcho. Um dos exemplos mais dolorosos é o Massacre de Porongos, uma emboscada que vitimou mais de cem soldados negros ao final da Guerra dos Farrapos. Conhecidos como "Lanceiros Negros", esses homens não combatiam pelos ideais farroupilhas, mas sim pela promessa da sonhada liberdade. O que se conta é que o então general da época, que até hoje é enaltecido por muitas pessoas, depois de desarmá-los na véspera, teria feito um acordo com os imperiais tramando local e data para o ataque a este grupo específico de soldados. A história de Porongos mostra a face vil das estruturas racistas, que coisificam a população negra. "Nossas vidas começam a acabar no dia em que nos calamos sobre as coisas que importam", como nos ensinou o ativista negro Martin Luther King Jr. Diante disso, resolvi que queria contribuir na busca dos verdadeiros relatos para que não somente a minha filha, mas todas as crianças negras e não negras tivessem o direito de conhecer os legítimos heróis e heroínas da história. Direito de conhecer personagens negras gaúchas que resistiram e ainda resistem. São essas figuras que também eu quero ver como exemplo de bravura e referências nos livros escolares e homenageadas com feriados.
O Negrosul
Minha pesquisa aspira pelo Rio Grande do Sul de organizações negras como o Grupo Palmares, que iniciou o debate sobre a Consciência Negra nacionalmente. Ou dos Clubes Negros que surgiram como contraponto à ordem social da época, indo de encontro aos outros clubes que não permitiam entrada de negros em seus quadros sociais. Dos Centros de Tradições Gaúchas Negros, os CTGs Negros, que atuam no sentido oposto ao Movimento Tradicionalista que preserva e divulga uma cultura e passado idealizados em que o negro, quando aparece, é de forma caricata. Em suas atividades e ritos, os CTGs reproduziam a segregação do sistema rural gaúcho, sendo invisibilizada a presença do sujeito negro, afirmando-se a reprodução de um ambiente de discriminação e racismo. Mesmo assim, a população negra, dotada de noção de pertencimento ao território gaúcho, criaram suas próprias entidades como forma de resistência.
Me interessa o Rio Grande do Sul da Liga das Canelas Pretas, conhecida como maior liga de clubes negros da história do país. Uma associação alternativa fundada por times negros de Porto Alegre na época em que não eram permitidas inscrições de clubes formados por negros e operários nos primeiros campeonatos organizados do estado. A Liga foi vanguarda na luta contra a segregação e o racismo no futebol brasileiro. Me interessa também o Movimento Negro Unificado, o MNU, que aqui também se organizou e provoca, cotidianamente, o debate racial no estado que ocupa o primeiro lugar no ranking nacional de casos de crimes por injúria racial.
Quero contar para a minha filha a história do Toque do Sopapo, o tambor afro-gaúcho, e do Cabobu, movimento que reuniu diversos artistas percussionistas e ressignifica a tradição musical originando um som específico afro-rio-grandense. Ou o Batuque das Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, da cultura popular que traz do Maçambique de Osório. Falar sobre as grandes e históricas figuras da história nacional: do cantor Lupicínio Rodrigues, de Deise Nunes, a primeira Miss Brasil negra; Malu Viana, Nei D´Ogum e tantos outros e outras.
O Futuro Ancestral
Eu falo sobre as inegáveis e incalculáveis contribuições da população negra nas identidades e estruturas que sustentam todas as partes do Brasil. E aqui no sul não é diferente. Os negros cumpriram e ainda exercem papel histórico de suma importância na desconstrução ou construção do território gaúcho enquanto espaço diverso onde é incluída a população negra. É necessário entender a importância do resgate e memória do negro gaúcho, para que haja a construção de uma contra hegemonia, fazendo frente ao racismo, ressignificando um passado que insiste em provocar no presente sequelas de desigualdades e violências. Agir no combate dos estereótipos negativos que foram socialmente cristalizados em relação à população negra é um passo para reverter essa chaga perversa que nos distancia do ideal de sociedade justa que queremos para o futuro do agora.
Abram alas, tirem o racismo do caminho e respeitem o Rio Grande do Sul que, sim, tem uma população negra aguerrida, pulsante e que traz toda a ancestralidade das matrizes africanas como parte fundamental do nosso povo."
Artigo publicado em UOL (06/02/2022) escrito por Isadora Bispo dos Santos, moradora de Santa Maria, Rio Grande do Sul. É advogada, mestranda em patrimônio cultural pela Universidade Federal de Santa Maria, atriz, produtora cultural e cineasta amadora. Integra o Movimento Negro Unificado (MNU), é gestora de Projetos da Associação de Arte e Cultura Negra Ara Dudu e Coordenadora da Rede de Mulheres Negras Obirin.
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